sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Carícia

Tire os sapatos. Não quero ouvi-los sobre as tábuas da varanda. Estou fazendo parte da paisagem; estou cuidando a brincadeira das crianças. Não fale nada. Sente-se ao meu lado; ajeite com a mão as dobras do vestido. Longe, veja, o sol poente só ilumina as árvores no topo das montanhas – saboreie um mate; eu saboreio o instante de ter olhos verde-ouro. Mas em silêncio, agora. Só mais um pouco. A pele se prepara para um toque, para uma carícia. Que seja doce. O gato que se enrola em nossas pernas, o nome dele é noite.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Carta a um aprendiz

Caro amigo;

Sinceramente reconheço as dificuldades que você diz enfrentar, e peço desculpas por não ter previsto que elas poderiam surgir. E de fato, como você me expôs em sua carta, a invocação da chuva para alívio das sensações desagradáveis do espírito raramente funciona em ambientes urbanos, onde a concentração de mana é um pouco menor ou, como preferem alguns, menos pura. Não se deixe ver, meu caro, repetindo os nossos gestos de invocação em praça pública ou em filas de supermercado: dificilmente eles produziriam efeito, e as pessoas à sua volta não ajudariam muito em vê-lo como um dançarino excêntrico exibindo sua arte onde bem entende. Sugiro que você realize esta magia bem mais simples, que eu já deveria ter-lhe ensinado, e que apesar de levar mais tempo exige consideravelmente menos mana:

Sente-se no chão. Prefira os pisos de azulejo, cimento cru ou qualquer coisa assim que remotamente lembre as nossas plataformas de pedra. Feche os olhos e se conecte às sensações desagradáveis. Concentre-se bem. Perceba que elas são moldáveis, como quaisquer energias, e lentamente comece a reuni-las – use as mãos, não se limite ao pensamento – em uma esfera compacta do tamanho de uma bola de tênis. Deixe essa esfera flutuando à sua frente, na altura do rosto, e observe-a bem com os olhos da mente. Muito cuidado nessa fase: as sensações desagradáveis são esquivas, e tentarão a todo custo retornar ao seu espírito. Afaste-as repetidas vezes com a mão direita, mantendo-as na esfera compacta, e diga em voz alta quantas vezes julgar necessário: Já estamos desligados. Somente quando estiver certo de que as sensações permanecerão na esfera, levante as duas mãos em sinal de paz e comunique: Vou lhes dar forma. Pergunte qual a forma que elas gostariam de ganhar e mãos à obra.

A esta altura, seu próprio mana já estará fluindo em quantidade suficiente para qualquer materialização simples, o que invariavelmente será o caso. O mais comum é que as sensações escolham uma forma artística – florzinhas de biscuit, estátuas de jade, blogues de poemas – e acredito honestamente que você não terá a menor dificuldade em atender-lhes o pedido.

E não se espante, meu amigo, se acaso elas optarem pela forma básica da lágrima. Lembre-se sempre de que as sensações desagradáveis não são mais que uma desordem temporária no mana, que sem descanso lutará para voltar à sua forma pura.

Com votos de melhoras,
receba o meu sincero abraço.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Terra estrangeira

Não é que eu tenha medo – nada disso é novo. A sensação de caos é sempre a véspera de um Big Bang possível. Se estou assim, é porque assim eu devo estar: meio confuso. Imóvel à beira do caminho. Tenho certeza: você foi feita pra que eu me perdesse, e é só questão de tempo até que eu recomece. Depois, até aceitar o engano; depois até acertar o grito. Mas por enquanto eu só cheguei até uma placa de "perigo".

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Signo de Touro

Era preciso que alguma coisa fosse eterna. Que estivesse lá todos os dias com o mesmo gosto, com o mesmo rosto. Arte rupestre, provérbio chinês, Acrópole, rima batida. Talvez como um eixo ao redor do qual pudesse gravitar o novo – um novo reverente. Luazinha submissa. Pra que fizesse sentido a obrigação da jornada em um mesmo corpo. Com um único nome. Pisando o que em qualquer lugar se chama pedra.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Identidade

Quando ela disse "eu gosto muito de você", não era a fama, a grana, o diploma na parede; não eram os poemas que eu mandava; não eram as canções que eu lhe fazia. Quando ela disse "eu gosto muito de você", não disse mais "doutor", ou "professor", ou "mano velho"; não disse nem meu nome; não esperou que eu respondesse nada. Falou assim, olhando nos meus olhos, mas meio sem pensar e por acaso, como se dissesse "é terça-feira", ou como se bebesse um gole d'água. Quando ela começou "eu gosto muito", e estava tão inteira e tão sincera, podia só dançar diante do espelho – que eu ia ser "você" na imagem dela.