terça-feira, 28 de abril de 2009

Crônica de um segredo que não me pertence

Raios de luz, cristais de muitas cores ocupam numa dimensão desconhecida o mesmo espaço em que eu, subitamente esquecido de tudo, enxergo apenas os teus pés voando escada abaixo em direção a mim. A concretude do teu corpo em roupas coloridas, teu cabelo solto, os braços e sorriso abertos vão curvando o espaço à tua volta na medida exata de um retrato; tudo é sólido e real, mas numa intensidade nova e infinitamente superior. Mas ainda assim, quanto mais próximo de ti menos compreendo essa realidade do mundo: para mim não somos mais do que dois personagens mergulhados em névoa, completamente imóveis um em frente ao outro, olhos nos olhos, sem compreender como é possível não estarmos juntos numa só matéria. E finalmente então, sem nada receber de ti além da breve sensação de um toque, percebo a minha pele dissolvendo em fogo as próprias cicatrizes, rugas, marcas – tudo o que nasceu do tempo; sou jovem outra vez e nada me ameaça: meu coração transborda lentamente a sua fonte oculta de imortalidade.

sábado, 25 de abril de 2009

Passar

Um a um
caíram meus sonhos.
E eu não estava lá.
Ninguém mais estava.
Lá.

Quem banhasse meus sonhos,
vestisse-os de prata.
Quem os guardasse um a um,
talvez
com o sal da palavra.

E como estar certo, agora,
de que lá onde nem eu estava,
entre os meus sonhos caídos,
nada
mais
pulsava?

domingo, 19 de abril de 2009

Das pequenas surpresas

Só um pouquinho de atenção, bebê, e você descobre que a vida extrai poesia de si mesma. Essa vida confusa, essa vida sombria que levamos por fazer a opção de não entrar no jogo – sem medir a força, sem nenhum aviso prévio nos aplica um golpe ao acender a luz; ao encontrar velhos amigos; ao dobrar a esquina calculando as quadras que ainda faltam. Mas um golpe de beleza, meu bebê, aquilo que outros chamam de golpe de sorte. Só que então pensamos que o presente não é nosso, que não pode ser; que não o merecemos, afinal, de tão acostumados que ficamos a esperar sempre o pior. Porque nos viciamos na acidez da ironia; porque gastamos as palavras pra falar no amor como um efeito especial na tela do cinema. Mas um presente da vida, bebê, não pode ser ignorado, transferido, jogado fora ou devolvido ao remetente. Porque ele vai ficar ali pregado bem no centro da salinha de TV, até que você se canse de estar sempre tropeçando nele – e então perceba, pro seu grande espanto, que ele é mais ou menos a mesma água que você buscava no meio das noites.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Mapa das horas

Canto porque fui como qualquer criança – e era o meu jeito de não escutar o que me incomodava.

Canto porque trago em mim o que a memória não apaga: amor secreto, alto do muro, vento no rosto ao passear de bicicleta.

Canto pra não me esquecer de um tempo em que vaguei com medo, ferido e abandonado – e ao chegar em casa descobria flores no tapete em frente à porta.

E um tempo mágico de anjos e cataventos, de estrelas que caíam no telhado e a gente não sabia o que fazer com elas.

Canto porque tudo segue vivo – e eu canto finalmente pra não me esquecer de agora.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sob um céu de abril

"Sim, estou apaixonada por você", ela disse. Havia algo de aéreo naquelas palavras, e havia essa poeira que pousava mansamente sobre um assoalho de madeira. Em uma biblioteca simples, no coração de um parque em Curitiba. "Você pode levar o que quiser", ela continuou, depois de longa pausa; "os livros que você emprestou, os quadros que você pintou pra mim. Pode levar aquelas noites todas que eu passei sonhando que você também me amava; as músicas de amor que me lembravam de nós dois; aquele monte de coraçõezinhos bobos que eu tracei com o dedo em vidros embaçados". Seria inútil responder. Nem nos olhávamos: mantínhamos o olhar perdido fora da janela, contemplando o lago, o seu reflexo pálido à luz da manhã. Ela continuava: "Pode levar a minha última esperança de me sentir segura – porque eu acho outra; pode levar a sensação intensa de estar viva que me vem só de escutar teu nome; pode levar essa alegria sólida, concreta, real e ao mesmo tempo mágica, infinita, delicada. Pode levar. Eu acho outra". Não resisti à vontade de vê-la enquanto ela falava tudo aquilo. Por pura crueldade trágica. Eu a amava perdidamente, mas sabia que nossa história não iria adiante: vivíamos em mundos separados. Eternos como Adão e Deus no teto da capela. "Mas uma coisa você nunca vai poder levar", ela dizia enfim. E eu já sabia o que era. Porque era o que eu também diria se não fosse ela quem tivesse começado. "Você nunca vai poder levar uma certeza que eu tive no dia em que viemos aqui juntos pela primeira vez. Você nunca vai poder levar essa lembrança clara do dia mais feliz da minha vida. Você nunca vai poder levar o que ficou em mim: você nunca vai poder levar o que já é você dentro de quem eu sou".

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A terceira noite

Na terceira noite de solidão, as coisas já não eram mais tão divertidas como nas outras duas. Viu-se de repente no centro da sala entre girassóis de plástico, versos de Cecília, porta-retratos vazios, um copo de conhaque, álbuns do Legião Urbana, pratos sujos, um par de meias, controles remotos, almofadas de renda, um violão, um abajur, um lápis, uma teia, o tapete, o cobertor azul, a tela da TV, o tédio e aquela ausência aterradora de outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a vida se cansou do fato de poder ser qualquer coisa. Pensou em escrever sua quadragésima carta de suicídio, em telefonar para desconhecidos, em publicar um livro de sonetos, em botar fogo na casa, em alugar um filme, em escalar um paredão de pedra, em atirar ovos em vira-latas, em não tomar um porre, em procurar no orkut a antepenúltima namorada, em adotar uma menina chinesa, em dormir debaixo do chuveiro, em comprar um video-game, em arrumar o quarto, em ficar catatônico, em fazer uma apresentação em Power Point com um texto ruim atribuído a Shakespeare, em seduzir, em se deixar ser reduzido, em inventar o que fosse para não ter que perceber aquela ausência aterradora de apenas outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a lógica se diluía por completo. Começou a elaborar um único romance que incluía amnésias induzidas, profecias maias, sofrimentos de um bobo-da-corte, namoros secretos entre adolescentes primos de terceiro grau, doze carnavais, sete viagens no tempo rumo a um único dia, uma cantora de ópera, um pequeno tornado, alusões ao Canto dos Centauros do Inferno de Dante, luta de classes, uma voz incorpórea percebida como "quente e açucarada" por um homem enlouquecido em sua oitava noite de solidão, comentários técnicos sobre a arquitetura dos prédios mais antigos de Buenos Aires, uma rosa, um capítulo inteiro descrevendo os movimentos aleatórios dos peixes em determinado ponto do oceano, astronautas que descobrem que nunca mais poderão voltar à Terra, esportes radicais, instrumentos de tortura, mágoas, mangás e duas xícaras de cappuccino fumegante.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Carta a um companheiro de batalha

Velho amigo;

Ainda pensando em melhorar o mundo, mas não muito atento ao que acontece nele desde que entrei em greve. Pelas condições precárias de trabalho, pelo ambiente insalubre; mas também por causa desse meu acúmulo de funções. Tranquei-me em casa e pendurei um cartaz na porta com os dizeres: "O mundo é dos espertos; eles que se virem" – ok, foi num momento de raiva, agora eu já tirei. Mas estou começando a achar que transformar o mundo é uma capacidade atávica, e estamos justamente naquela geração em que o gene não se manifesta. Será que alguém aí não pode dar uma mãozinha?!... Você sabe que eu tenho essa tendência ao messianismo, e me sentir sozinho não ajuda muito. Começo até a achar bonito as crianças daqui me chamarem de Jesus por causa dos cabelos e da barba que eu não tiro por preguiça (e uma menina da faculdade disse que eu lembro as imagens dele por causa dos olhos tristes!) Também é divertido reparar que da capital para a província eu fui do bairro Cristo Rei para o Menino Deus – veja bem, não é um detalhe delicioso? – mas a verdade é que eu gostaria mesmo de estar ocupado com alguma coisa mais importante do que isso. Não estaria na hora de organizarmos algumas reuniões secretas? Pichar muros, distribuir panfletos, ministrar palestras para os maiores interessados? Tem muita gente por aí pensando que somos do tipo "sem causa": não seria o momento de publicarmos nosso manifesto? Com reivindicações mais claras? "Queremos um mundo melhor", você sabe, caiu em descrédito – já deve ter estado em umas duzentas campanhas publicitárias, e só piora. Pense nisso, por favor. Depois conversamos. Mas não demore muito, sim?, porque daqui a pouco vão estar cobrando e eu realmente não queria ter que dar nenhum sermão na montanha.

Abraços.

domingo, 5 de abril de 2009

Transitória

Deixo você dormindo até mais tarde, saio pra comprar o pão. Em pouco tempo a casa toda vai ter cheiro de café com flores; um sorriso a mais; o amor se espreguiçando no domingo. Bom dia misturado ao riso lá de fora, uma voz pequena repetindo ao pai eu-já-consigo-andar-tudo-isso-sem-rodinhas. Quem foi que teve a ideia de lhe dar uns olhos tão azuis? Eu posso lhe falar do mundo, de tudo que ele teve que passar pra que estivéssemos aqui – esse sentido último. Mas não que eu tenho que mostrar mais uma vez como espalhar manteiga!? (Podemos rir mais alto, pro escândalo completo dos vizinhos.) Eu passaria a vida inteira vendo o sol nas suas pernas. Mas antes do café esfriar, meu bem, experimente um pouco dessa torta; do coração da rosa; daquela nuvem que eu tive que mandar fazer...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

De repente uma tristeza adolescente

Visão Noturna do Centro fotografado da Reitoria UFPR
por Adilson Gomes

Seria bom, amiga, se eu conseguisse explicar por que meu coração ficou pequeno de uma hora para a outra; mas só sei que foi assim, e eu tive que dizer licença eu vou comprar um mate ou vou tomar um bonde; até que no fim, desculpa, eu acabei me debruçando na janela e tive que chorar tudo isso enquanto o professor falava. A gente não escolhe, amiga, nem a dor que sente nem a hora de sentir – seria bonito, seria um passeio hippie pelo bosque, disco infantil contendo uma historinha inofensiva para o seu menino, seria um ídolo de ouro com a nossa cara se a vida conseguisse ser menos estúpida e canalha como acaba sendo vez ou outra. Então é tudo uma questão de segurar as rédeas? Então não é num tigre que montamos? Seria bom, amiga, se fosse uma questão de ter vontade ou lucidez. Mas a gente simplesmente não escolhe o amor que sente. A gente não escolhe não encontrar ninguém. A gente não escolhe esse cansaço no final do dia, no alto de um prédio em uma aula de Grego Avançado, e se sentir completamente zonzo e só quando ao olhar pela janela reparamos no cair da noite sobre uma cidade que não tem mais fim...

***

hoje à noite, diz Leminski,
(anote em seu caderno)
hoje à noite
lua alta
faltei
e ninguém sentiu
a minha falta


É bobo, eu sei. Mas por hoje é tão... verdade...