quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O relator

"E mesmo que alguém enxergasse por trás das palavras", ele pensava, "quem algum dia saberia o que é estar aqui dentro?"

Carregando uma história única sob a chuva, às dez e meia da manhã, voltando para casa pela rua que margeia o rio. Pequeno desconforto da roupa molhada, de estar usando sandálias – mas era um dia claro e abafado de verão, e afinal a chuva não estava assim tão forte.

"Por um segundo, só,

eu gostaria de ser outra pessoa e poder me olhar de fora. Livrar-me, soltar-me dessa erupção constante de novos estados de alma; ver-me fixado em uma cara de sono ou de alegria e conseguir entender a mim mesmo como alguém que simplesmente está com sono ou alegre – só isso, fácil assim, mais nada".

Uma fina camada de água escorria pela calçada enquanto ele subia o morro. Ipês floridos, pessoas cinzas sob guarda-chuvas, uma oficina de televisores em que ele nunca havia reparado. Lá embaixo, o rio seguia o seu curso, indiferente, preguiçoso,

"pardo", ele acrescentou.

"Eu vou escrever até os meus dedos sangrarem. Eu vou me dar uma overdose dessa exposição compulsiva".

Suas costas, suas pernas doíam. Homens conversavam animadamente sob uma marquise. Ser outro. Ser falante e sociável. Deixar-se. Ser como o rio que corria.

"Ou nada", ele murmurou.

Ou nada. Ser como o rio que corria sem nunca pensar se era rio ou nada.

Um comentário:

Anônimo disse...

comi frango ao molho pardo.