quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O relator

"E mesmo que alguém enxergasse por trás das palavras", ele pensava, "quem algum dia saberia o que é estar aqui dentro?"

Carregando uma história única sob a chuva, às dez e meia da manhã, voltando para casa pela rua que margeia o rio. Pequeno desconforto da roupa molhada, de estar usando sandálias – mas era um dia claro e abafado de verão, e afinal a chuva não estava assim tão forte.

"Por um segundo, só,

eu gostaria de ser outra pessoa e poder me olhar de fora. Livrar-me, soltar-me dessa erupção constante de novos estados de alma; ver-me fixado em uma cara de sono ou de alegria e conseguir entender a mim mesmo como alguém que simplesmente está com sono ou alegre – só isso, fácil assim, mais nada".

Uma fina camada de água escorria pela calçada enquanto ele subia o morro. Ipês floridos, pessoas cinzas sob guarda-chuvas, uma oficina de televisores em que ele nunca havia reparado. Lá embaixo, o rio seguia o seu curso, indiferente, preguiçoso,

"pardo", ele acrescentou.

"Eu vou escrever até os meus dedos sangrarem. Eu vou me dar uma overdose dessa exposição compulsiva".

Suas costas, suas pernas doíam. Homens conversavam animadamente sob uma marquise. Ser outro. Ser falante e sociável. Deixar-se. Ser como o rio que corria.

"Ou nada", ele murmurou.

Ou nada. Ser como o rio que corria sem nunca pensar se era rio ou nada.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O enredo

Vou tentar não enlouquecer por uma coisa assim. É verdade, faz muito tempo que eu não transformo as coincidências em sinais de um plano divino que eu possa entender e ajudar a colocar em prática: eu as registro, apenas, como importantes variáveis em uma equação cujo resultado eu talvez nunca chegue a conhecer. E, no entanto, não consigo evitar que elas exerçam forte influência sobre algumas decisões de ordem prática. Hoje aconteceu isto, por exemplo, e eu ainda não sei quais serão os desdobramentos do caso, mas a julgar pelo histórico de eventos muito semelhantes envolvendo a mesma pessoa, acredito que eu vá decidir ficar sozinho e desligado do mundo pelas próximas semanas.

É assim que eu tenho estado por culpa de Isadora há oito ou nove meses, de modo que não é nada de extraordinário. Essa mulher me transformou em qualquer coisa como seu escravo: eu largo o que estiver fazendo quando ela me chama, eu faço qualquer coisa que ela peça enquanto, por sua vez, ela mantém a decisão de se casar com Antônio Carlos em outubro deste ano. Nem posso vê-la a qualquer momento – e de uns tempos para cá tenho tido que enfrentar longos períodos de espera, o que me entristece profundamente. É óbvio que Isadora está superando a sua indecisão pré-nupcial, e que eu estou perdendo. Mas estou cada vez mais obcecado por ela. Não sei, não posso, não quero viver com nenhuma outra pessoa. Já estou à beira do ridículo.

Então hoje à noite eu me cansei. Tinha acabado de tirar o telefone do gancho para ligar para ela, depois a imaginei nos braços de Antônio Carlos e não tive mais a menor vontade de discar seu número. Se a sua incapacidade de tomar uma decisão continuasse deixando tudo como estava, eu não ia ficar aqui esperando até que isso chegasse a um “sim” sorridente no altar de outro homem. E eu não ia mendigar umas migalhas do seu tempo. Nem ia me esconder em minha casa, passar outra noite sozinho e afogado em tristeza enquanto a cidade inteira estava na avenida principal vendo os ensaios das escolas de samba. Hoje à noite eu estava livre. Às vésperas do Carnaval, eu nunca mais ia sofrer por causa de Isadora.

Então lá estava eu em uma das arquibancadas. Sozinho, triste – mas na mesma rua que pelo menos outras mil e quinhentas mulheres. E do que mais eu precisava? Eu realmente me sentia livre, neste momento áureo da vida em que já não sou nenhum moleque nem encontrei ainda um único fio de cabelo branco. Olhei em volta, reparei naquele mar de gente e pensei: posso escolher quem eu quiser – o que, embora tivesse as suas complicações, era a mais pura verdade. Posso escolher quem eu quiser – eu quase disse em voz alta, como se descobrisse a pólvora; e depois de novo: posso esco...

Ok, agora alguém me diz quais são as chances de uma coisa assim acontecer. Que justamente aquele pensamento, que justamente aquela palavra se perdesse na visão do rosto de Isadora, sozinha em uma arquibancada do outro lado da avenida.