sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Represa

Num universo paralelo, mas aqui, às margens do nosso, ficaram palavras não ditas e o brilho dos olhos, ficou um sorriso sincero, ficou a ternura que se gastou na luta. Num universo paralelo, aqui dentro, há todo esse mar contido pela solidez das horas, por um salário mais alto, por uma ideia oca de maturidade. Em outra dimensão, sem conseguir atravessar a fortaleza fria da realidade, arde um desejo caloroso e limpo de criar, de ver crescer e de crescer em segurança, iluminado, vivo; e soterrado, assim, pelos entulhos de uma sobriedade estéril, adormeceu o sonho de permanecer sonhando - mas no vazio dos cofres, nas fendas do asfalto, nos intervalos entre as senhas dos balcões de atendimento escapa às vezes o seu hálito de sonho, o líquido invisível que enverniza a matéria; e sem que o saibamos, e sem que a matemática permita, é esse universo oculto de esperanças ingênuas que nos move, que nos alimenta, e que nos lança cada vez mais perto de uma coisa que buscamos sem sequer nos recordar: alguma coisa como um lar perdido, como uma paz impossível, como o alívio quase imerecido de ser afinal perdoado.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Jornada

1. A cabeça encostada na janela do ônibus, chove lá fora e não sei se estou triste por estar longe de casa ou por achar que nunca a tive. O mundo dá voltas, corre o asfalto sob o meu corpo imóvel e faz um frio insuportável em todos os lugares. Parado diante de um guichê na próxima rodoviária, eu ficaria eternamente sem sequer me perguntar "pra onde, agora?", porque a vida é muito assustadora na modalidade de poder ser tudo. Ser livre é desgastante; mas não adianta, não consigo dormir em viagens.

2. Leio uma história didática chamada Educação ou Culpa, meio boba até, mas com uma capa bonita de couro verde e detalhes em dourado. Um menino vai passar as férias de verão com a família de um padrinho, e logo nos primeiros dias quebra um vaso da sala em uma brincadeira. O padrinho proíbe todo mundo de se aproximar dos cacos; o menino entende que é pra que ele não se esqueça de ter sido irresponsável e saiba se comportar melhor dali pra frente. Os dias seguintes vêm em clima de tortura psicológica: ninguém mais fala sobre o assunto, mas o menino percebe que todos o observam de canto e acha que sua presença ali já não é muito bem vinda. A culpa pelo acidente com o vaso atinge um grau de delírio na noite em que a filha do padrinho cai sobre os cacos e se machuca seriamente. Naquela noite, quando todos dormem, o menino vai em transe até a sala e começa a retalhar o próprio corpo. Sangra até perder os sentidos; acorda na manhã seguinte com o padrinho ao seu lado em um quarto de hospital. E finalmente pede desculpas, chora, explica-se, faz sua catarse. O homem não responde, meio constrangido e fragilizado, o que desperta uma raiva inesperada no menino: "Por quê", ele explode então, "por que você fez questão de deixar os cacos na sala?". O homem passa a mão pela testa, hesita, depois responde como se pedisse desculpas por ter tido uma ideia idiota: "Eu deixei lá pra que você varresse".

3. No quarto de um hotel barato na beira da estrada, tentando colocar ordem no caos. A luz é tão fraca que mal consigo enxergar o meu rosto do outro lado do espelho. E tenho ainda uma longa caminhada. Desenho uma runa com o canivete no tampo da escrivaninha: Nauthiz, situações perigosas.

4. Pensar que um dia estivemos completos, na infância talvez, seria o mesmo que dizer que ao longo da vida só o que fazemos é perder pedaços, ir apagando aos poucos. Não quero, não posso pensar assim; preciso seguir adiante, agora, sem nem perguntar o nome daquilo que se perde. Alguma coisa terá que morrer, eu sei. Mas outra coisa espera pra ser conquistada.

5. Pela janela do quarto, ouço a voz da Alice de Lewis Carroll num terreno baldio: "Não, já decidi: se sou Mabel, vou ficar aqui embaixo! Não vai adiantar nada eles enfiarem as cabeças para baixo e dizerem: 'Venha para cima querida!'. Vou olhar para cima e dizer: 'Quem eu sou então? Primeiro me digam isso, e depois, se eu não gostar, vou ficar aqui embaixo até ser outra pessoa'..."

6. Muito antes de eu ter me tornado um Mago, já tinha ouvido algumas lendas sobre a Flor de Vidro: uma peça mágica tão poderosa que daria àquele que a possuísse tudo de que ele sente falta. Dediquei muitos anos à sua procura, ridicularizado pelos meus irmãos, eu mesmo muitas vezes duvidando seriamente de sua existência; até que a encontrei, nem tão escondida assim, no porão de uma casinha próxima ao farol de Blavand, na Dinamarca. Por sorte, antes que eu a tomasse com um gesto de triunfo, reparei em um bilhete envelhecido do seu lado: a Flor de Vidro é extremamente frágil, e ainda não está pronta. Ela precisa ser banhada em um lago branco que não sei onde fica, e só depois disso é que estará de posse dos seus plenos poderes. E foi assim que a minha bênção se tornou maldição: agora mal consigo dar um passo sem temer que ela se quebre, e que esteja perdida assim a minha única chance de ter tudo o que me falta. Uma ansiedade louca, um pavor quase incontrolável vigia os meus gestos. Antes de me dar os paraísos que eu quero, a Flor de Vidro me oferece o inferno do mais absoluto medo.

7. "Mas se eu vencer esse medo", eu me pergunto, "não estarei conquistando em mim mesmo tudo o que me falta?"

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Para as horas mais tristes

Solte o tempo e mergulhe.
Cada imagem é um universo completo.
Eis aqui os meus: rosa branca,
araçá,
uma tarde na cascata
e o nome de um poema antigo:

Acorda, Estrela.

Solte o tempo e me abrace.